AUTO DA PALINA
Por Joaquim A. Rocha
Edição de autor
Ficha
técnica
Título: Auto da Palina
Autor –
Joaquim A. Rocha
Capa – desenho
de Rui Nunes
Fotografias
– vários autores
Execução
gráfica –
Tiragem
–
Depósito
legal –
ISBN –
Data de edição
–
Correio
eletrónico: joaquim.a.rocha@sapo.pt
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No Boletim dos
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No Boletim Cultural
da Câmara Municipal de Melgaço
No jornal A Voz de
Melgaço
No jornal
Fronteira Notícias
etc.
Artigo sobre o
santuário da Peneda no livro Lugares Sagrados de Portugal I, editado pelo
Círculo de Leitores em 2016.
Explicação
Este auto tem por
base uma história real. Sabe-se, contudo, que um auto é sempre uma composição
de índole ficcional, dramática, pelo que, assim sendo, não será de estranhar
que os quadros aqui apresentados não correspondam, ponto por ponto, aos factos
históricos e registados no processo jurídico.
A “Palina”
existiu. Nasceu no concelho de Melgaço há mais de cem anos. Foi
presa por homicídio voluntário; mas, já antes do homicídio, tinha comprado uma
criança a uns pobres caseiros e - com ela - engendrara uma das suas famosas
tramoias.
Quando foi presa a
primeira vez, conseguiu fugir aos soldados da Guarda Nacional Republicana. A
sua segunda fuga foi da própria prisão! Emagreceu, emagreceu, até conseguir
passar pelas grades. Uma autêntica obra-prima. Um prodígio de audácia e
simultaneamente de desprezo pela vida.
Capturada, após
peripécias várias, foi julgada e condenada a cerca de vinte anos de reclusão;
enviaram-na para a penitenciária de Lisboa logo a seguir ao veredicto. Depois
disso, perdeu-se-lhe completamente o rasto, dando assim origem ao mito.
Sabe-se agora que
apenas cumpriu quinze anos de prisão: algumas amnistias, bom comportamento,
contribuíram para a redução da pena. Voltou para Melgaço, para junto da sua
filha, que morava no dito concelho de Melgaço.
A 24/6/1987 estive com ela, na dita casa da filha, tinha ela cerca de setenta
anos de idade. A filha, de quarenta e um anos de idade, já estava casada, e
tinha geração. Assistiu à nossa conversa, a qual, pasme-se, num gesto de
simpatia, foi à adega buscar uma malga de vinho para me oferecer. Não me
deixaram tirar fotografias, invocando o pretexto, muito feminino, de que
estavam mal-arranjadas. Prometeram, no entanto, que em um dia de feira iriam à
vila e lá sim, «poderá tirar as que quiser.» Jamais consegui alcançar tal
objetivo.
A velha “Palina”
contou-me que tinha estado presa durante quinze anos, disse-me que era melgacense, e seu nome verdadeiro era ..............; Palina era
apenas uma alcunha.
A história
autêntica, real, é bem mais complexa do que aquela que vos vou narrar. Foi
presa por matar a esposa de A.D., de quem se tornara
amante. Penso que ela era empregada doméstica do casal. Morta a senhora, ela
teria hipóteses de casar com o seu viúvo. Assim, envenenou-a lentamente, com
pequenas doses de raticida, o qual ia pondo no chá da senhora. Depois da morte
trataram do casamento, mas este jamais se concretizou em virtude de uma prima
da vítima defunta ter exigido a autópsia do corpo. Provou-se, assim, que de
facto tinha havido assassínio. Não foi difícil às polícias de investigação
descobrir os seus autores. O amante da malvada também esteve preso alguns anos,
acusado de colaboração.
O caso da criança
passou-se com outro indivíduo, de cinquenta e tal anos de idade, solteiro, o
qual se apaixonou pela jovem Palina. A espertalhona deitou-se com ele, com o
objetivo claro de ficar grávida para assim a criança herdar os bens do tipo.
Como não conseguiu a gravidez desejada, engendrou o plano da compra de um bebé!
Um dia, apareceu com a barriga gorda e disse ao amante que finalmente estava
grávida. Era uma barriga de trapos, obviamente. O “futuro pai” baboso
acreditou. Passado algum tempo ela apareceu com uma criança de meses, do sexo
masculino, que comprara a um casal, gente miserável, a quem arranca os pelos
das pestanas para parecer um recém-nascido. Os familiares do senhor, porém,
desconfiaram da marosca, e acabaram por tudo descobrir. Assim, não houve
herança e a Palina foi presa pela Guarda Nacional Republicana e, após sentença,
desterrada durante seis meses para o vizinho concelho de Monção. Não tardou
muito, porém, a envolver-se noutra aventura.
Ela era, nessa
altura, uma jovem mulher desesperada. Com uma filha para criar, mãe solteira,
via-se numa situação bastante difícil. Os homens, nessas circunstâncias,
costumam abusar, olhando para essas mulheres com se fossem prostitutas. Por
outro lado, estando a servir em casa de pessoas vivendo razoavelmente bem,
sentir-se-ia frustrada, por não conseguir uma vida igual ou semelhante. Quanto
a mim, a “Palina” era um ser humano em conflito consigo próprio, uma mulher
revoltada. A sua sensibilidade levá-la-ia a sonhar alto. Desejava certamente
roupas bonitas para mostrar nos bailes e festas que, periodicamente, havia
nessas lindas terras minhotas. Ela deveria ter sido, quando moça, uma bela
mulher, e os rapazes assediá-la-iam com certeza. Infelizmente, a pobreza era
apanágio de quase toda a gente. A “Palina” teve a pouca sorte de nascer em um
concelho pobre, no meio rural, em um período obscurantista, de guerra mundial. Os
recursos desse concelho são limitadíssimos e ainda por cima nunca foram bem
aproveitados. As técnicas de cultivo eram rudimentares, lembrando os tempos
bíblicos. Desse modo, as “Palina” teriam de viver modestamente, com saias de
chita e xailes de seda a fingir. Por isso, não admira que o sonho substituísse
a realidade. Mas esta mulher quis ir mais longe! O sonho não a satisfazia
minimamente. Ela queria dormir numa cama decente, entre lençóis de linho,
queria ter refeições boas e diárias, e queria – acima de tudo – ter um nome e
ser respeitada. O caminho por ela escolhido, ou percorrido, foi errado; mas
fosse qual fosse o eleito, não seria o ideal, o verdadeiro, porque esse,
simplesmente, não existia para ela. Só a resignação era possível, nesses tempos
de penúria.
A emigração foi
sempre uma porta aberta, uma alternativa, mas, no caso das mulheres, isso era
quase uma blasfémia. E depois, a prostituição estava quase sempre à espera;
empregadas domésticas e para todo o serviço!
O crime desta
criatura é o crime que todos nós cometemos diariamente quando aspiramos a
ocupar o lugar do outro, daquele que está em posição superior à nossa. Os meios
usados é que nem sempre são os mesmos, são mais subtis, mais refinados, mais
“legais”. Quem pode condenar o desejo, humano, de querer mais e melhor? Quem
poderá impedir as pessoas de desejarem para os seus filhos aquilo que elas não
puderam obter? A sociedade é um polvo gigante, cujos tentáculos protegem e
destroem os seus membros. O “bolo” é pequeno, e pequeno deverá ser o grupo que
dele se alimenta. Assim, a maioria contentar-se-á com as migalhas deixadas na
mesa por esses comilões. As polícias, os tribunais, os exércitos, só
aparentemente protegem o povo. Este, vegeta no prado delapidado, quase exausto.
Só tem direito às ervas que “eles” não querem. Escusado será dizer que o ensino
estava vedado aos filhos do povo, nos anos cinquenta do século XX – fazer a
terceira ou quarta classe do ensino básico, ou primário, era um privilégio. O
ensino secundário e superior estavam reservados aos filhos-de-algo: aos ricos
ou seus protegidos, aos quais, normalmente, mandavam para os seminários, para
depois os absolverem de todos os pecados, grandes e pequenos, e poderem, desse
modo, gozar as delícias do céu cristão. A escolha era tão minuciosa que
chegavam ao extremo de não permitirem que os filhos de mãe solteira
frequentassem o seminário, talvez por pensarem que o jovem já tinha nascido
pecador e a sua inserção no meio religioso pudesse contaminar toda a
comunidade. Esses jovens eram duplamente castigados: por um lado, o destino
negou-lhes um pai; por outro lado, a sociedade rejeitava-os logo que nasciam! A
sua estrela não brilharia nunca, o estigma cruel acompanhá-los-ia durante toda
a vida.
Mas, chega de
filosofias, vamos ao assunto principal, ao nosso auto. O narrador aparece no
palco. Um sorriso cúmplice nos lábios. Diz, em voz alta: - «apresento-vos,
finalmente, as personagens:»
Palina – Mulher de vinte e cinco anos de idade, magra,
morena, cabelos negros, olhos castanhos e enigmáticos. A sua estatura é a
habitual nas mulheres de tipo minhoto ou galego. Pouco instruída escolarmente.
De uma voluntariedade extrema, apresentava-se ambiciosa, arguta – capaz de tudo
para conseguir os seus fins. Fins esses que, convenhamos, não eram muito
ortodoxos.
Vizinho – Homem de idade, olhar inteligente. Aldeão sem
caraterísticas especiais.
Velho – Homem tipicamente provinciano, com algum dinheiro,
produto da venda de uns terrenos e também daquilo que amealhou durante os anos
de emigrante em França. Ronda, nesta altura, os sessenta anos de idade, mas
aparenta um pouco mais.
Criança – bebé do sexo feminino, magro e com bastante cabelo.
Moleiro – Homem baixo e forte. Aparenta ter cerca de quarenta
e cinco anos de idade. Analfabeto. O seu olhar é o de uma pessoa tosca e
tímida.
Enteado – Rapaz de vinte e dois anos de idade, quase um metro
e setenta centímetros de altura, magro, mas de porte atlético; apenas possuía a
instrução primária. Trabalhava a terra, como seu pai. Tendo ficado órfão de mãe
aos dezoito anos de idade, pensou sempre que o seu progenitor não voltaria a
casar, pertencendo-lhe, assim, todas as terras e a casa onde habitavam.
Primeiro guarda – Baixo, gorducho, cabeça grande, um pouco
velhaco e muito orgulhoso. Teimoso como um burro, perseguia as suas presas até
as ver bem fechadas na cela da prisão.
Segundo guarda – Muito parecido com o seu colega; teria um
metro e sessenta e cinco centímetros de altura, trinta e cinco a quarenta anos
de idade, setenta a oitenta quilos de peso. Pernas arqueadas, andar
extremamente cómico.
Guarda-florestal – Figura simpática, respeitador da lei e da
ordem, a sociedade para ele não devia ter gente má. Por isso, colaborava com os
agentes dessa ordem em prol, dizia, do extermínio dos malandros.
Juiz – Como todos os juízes de Portugal: uma barba austera
num rosto grave; um olhar frio, num rosto inexpressivo; distante dos outros
seres humanos como convém a quem julga e não é julgado.
Advogado de acusação – Um verdadeiro dândi: barba à Antero de
Quental, sorriso abundante. Bom orador, conjugando os verbos em todos os tempos
e modos.
Escrivão – Pessoa de meia-idade, habituado a obedecer, fica
surpreendido com a atitude afrontosa da Palina. Protótipo do funcionário
público manga-de-alpaca.
Agente da judiciária – Grande como um touro. Relativamente
jovem, olhar penetrante, e com uma personalidade forte.
Narrador – homem ou mulher, ou travesti, sabendo utilizar uma
voz zombeteira quando necessário. Neste auto, ou farsa, vai ser preciso usá-la
algumas vezes.
Mas finda a explicação…
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