AUTO DA PALINA

Por Joaquim A. Rocha

 


Edição de autor

 

Ficha técnica


Título: Auto da Palina

Autor – Joaquim A. Rocha

Capa – desenho de Rui Nunes

Fotografias – vários autores

Execução gráfica –

Tiragem –

Depósito legal –

ISBN –

Data de edição –

Correio eletrónico: joaquim.a.rocha@sapo.pt

Blogues: Melgaço, Minha Terra; Poesia do Vento

 

Obras do autor

 

Obras a publicar

Poemas do Vento

Sonetos do Sol e da Lua

Quadras ao deus dará

Escritos Sobre Melgaço

Entre Mortos e Feridos (romance)

Lembranças Amargas (romance)

Gentes do Concelho de Melgaço (micro biografias)

Dicionário Enciclopédico de Melgaço

A Minha Vida em Imagens

A minha religião e outros escritos

Auto da Palina

Frágeis Elos (2.ª edição)

Melgaço: Padres, Monges e Frades.

Escritores e Investigadores Melgacenses (e Afins)

Sob o Signo do Azar


Obras publicadas


Livros

Frágeis Elos (uma história familiar)

Dicionário Enciclopédico de Melgaço (I e II volumes)

Lina – Filha de Pã (romance)

Os Meus Sonetos e os do frade

Os Novos Lusíadas

Melgacenses na IGG (…)

- em parceria com Walter Alves –

 

Separatas


A Origem de Algumas Famílias Melgacenses

A Febre Tifoide e os seus Protagonistas

Tomás das Quingostas (200 anos do seu nascimento)

A Provável Origem de Melgaço e Paderne

 

Prefácios nos livros de José A. Cerdeira e de Augusto César Esteves:

Tomaz das Quingostas

O Buraco da Serpe

A Adversidade por Madrasta

O Sonhador dos Montes da Aguieira

Nas Páginas do Notícias de Melgaço


Colaborações


No Boletim dos Serviços Sociais da CGD

No Boletim Cultural da Câmara Municipal de Melgaço

No jornal A Voz de Melgaço

No jornal Fronteira Notícias

etc.

Artigo sobre o santuário da Peneda no livro Lugares Sagrados de Portugal I, editado pelo Círculo de Leitores em 2016.

  

Explicação

 

     Este auto tem por base uma história real. Sabe-se, contudo, que um auto é sempre uma composição de índole ficcional, dramática, pelo que, assim sendo, não será de estranhar que os quadros aqui apresentados não correspondam, ponto por ponto, aos factos históricos e registados no processo jurídico.

     A “Palina” existiu. Nasceu no concelho de Melgaço há mais de cem anos. Foi presa por homicídio voluntário; mas, já antes do homicídio, tinha comprado uma criança a uns pobres caseiros e - com ela - engendrara uma das suas famosas tramoias.

     Quando foi presa a primeira vez, conseguiu fugir aos soldados da Guarda Nacional Republicana. A sua segunda fuga foi da própria prisão! Emagreceu, emagreceu, até conseguir passar pelas grades. Uma autêntica obra-prima. Um prodígio de audácia e simultaneamente de desprezo pela vida.

     Capturada, após peripécias várias, foi julgada e condenada a cerca de vinte anos de reclusão; enviaram-na para a penitenciária de Lisboa logo a seguir ao veredicto. Depois disso, perdeu-se-lhe completamente o rasto, dando assim origem ao mito.

     Sabe-se agora que apenas cumpriu quinze anos de prisão: algumas amnistias, bom comportamento, contribuíram para a redução da pena. Voltou para Melgaço, para junto da sua filha, que morava no dito concelho de Melgaço. A 24/6/1987 estive com ela, na dita casa da filha, tinha ela cerca de setenta anos de idade. A filha, de quarenta e um anos de idade, já estava casada, e tinha geração. Assistiu à nossa conversa, a qual, pasme-se, num gesto de simpatia, foi à adega buscar uma malga de vinho para me oferecer. Não me deixaram tirar fotografias, invocando o pretexto, muito feminino, de que estavam mal-arranjadas. Prometeram, no entanto, que em um dia de feira iriam à vila e lá sim, «poderá tirar as que quiser.» Jamais consegui alcançar tal objetivo.

     A velha “Palina” contou-me que tinha estado presa durante quinze anos, disse-me que era melgacense, e seu nome verdadeiro era ..............; Palina era apenas uma alcunha.        

     A história autêntica, real, é bem mais complexa do que aquela que vos vou narrar. Foi presa por matar a esposa de A.D., de quem se tornara amante. Penso que ela era empregada doméstica do casal. Morta a senhora, ela teria hipóteses de casar com o seu viúvo. Assim, envenenou-a lentamente, com pequenas doses de raticida, o qual ia pondo no chá da senhora. Depois da morte trataram do casamento, mas este jamais se concretizou em virtude de uma prima da vítima defunta ter exigido a autópsia do corpo. Provou-se, assim, que de facto tinha havido assassínio. Não foi difícil às polícias de investigação descobrir os seus autores. O amante da malvada também esteve preso alguns anos, acusado de colaboração.                

     O caso da criança passou-se com outro indivíduo, de cinquenta e tal anos de idade, solteiro, o qual se apaixonou pela jovem Palina. A espertalhona deitou-se com ele, com o objetivo claro de ficar grávida para assim a criança herdar os bens do tipo. Como não conseguiu a gravidez desejada, engendrou o plano da compra de um bebé! Um dia, apareceu com a barriga gorda e disse ao amante que finalmente estava grávida. Era uma barriga de trapos, obviamente. O “futuro pai” baboso acreditou. Passado algum tempo ela apareceu com uma criança de meses, do sexo masculino, que comprara a um casal, gente miserável, a quem arranca os pelos das pestanas para parecer um recém-nascido. Os familiares do senhor, porém, desconfiaram da marosca, e acabaram por tudo descobrir. Assim, não houve herança e a Palina foi presa pela Guarda Nacional Republicana e, após sentença, desterrada durante seis meses para o vizinho concelho de Monção. Não tardou muito, porém, a envolver-se noutra aventura.

     Ela era, nessa altura, uma jovem mulher desesperada. Com uma filha para criar, mãe solteira, via-se numa situação bastante difícil. Os homens, nessas circunstâncias, costumam abusar, olhando para essas mulheres com se fossem prostitutas. Por outro lado, estando a servir em casa de pessoas vivendo razoavelmente bem, sentir-se-ia frustrada, por não conseguir uma vida igual ou semelhante. Quanto a mim, a “Palina” era um ser humano em conflito consigo próprio, uma mulher revoltada. A sua sensibilidade levá-la-ia a sonhar alto. Desejava certamente roupas bonitas para mostrar nos bailes e festas que, periodicamente, havia nessas lindas terras minhotas. Ela deveria ter sido, quando moça, uma bela mulher, e os rapazes assediá-la-iam com certeza. Infelizmente, a pobreza era apanágio de quase toda a gente. A “Palina” teve a pouca sorte de nascer em um concelho pobre, no meio rural, em um período obscurantista, de guerra mundial. Os recursos desse concelho são limitadíssimos e ainda por cima nunca foram bem aproveitados. As técnicas de cultivo eram rudimentares, lembrando os tempos bíblicos. Desse modo, as “Palina” teriam de viver modestamente, com saias de chita e xailes de seda a fingir. Por isso, não admira que o sonho substituísse a realidade. Mas esta mulher quis ir mais longe! O sonho não a satisfazia minimamente. Ela queria dormir numa cama decente, entre lençóis de linho, queria ter refeições boas e diárias, e queria – acima de tudo – ter um nome e ser respeitada. O caminho por ela escolhido, ou percorrido, foi errado; mas fosse qual fosse o eleito, não seria o ideal, o verdadeiro, porque esse, simplesmente, não existia para ela. Só a resignação era possível, nesses tempos de penúria.

     A emigração foi sempre uma porta aberta, uma alternativa, mas, no caso das mulheres, isso era quase uma blasfémia. E depois, a prostituição estava quase sempre à espera; empregadas domésticas e para todo o serviço!

     O crime desta criatura é o crime que todos nós cometemos diariamente quando aspiramos a ocupar o lugar do outro, daquele que está em posição superior à nossa. Os meios usados é que nem sempre são os mesmos, são mais subtis, mais refinados, mais “legais”. Quem pode condenar o desejo, humano, de querer mais e melhor? Quem poderá impedir as pessoas de desejarem para os seus filhos aquilo que elas não puderam obter? A sociedade é um polvo gigante, cujos tentáculos protegem e destroem os seus membros. O “bolo” é pequeno, e pequeno deverá ser o grupo que dele se alimenta. Assim, a maioria contentar-se-á com as migalhas deixadas na mesa por esses comilões. As polícias, os tribunais, os exércitos, só aparentemente protegem o povo. Este, vegeta no prado delapidado, quase exausto. Só tem direito às ervas que “eles” não querem. Escusado será dizer que o ensino estava vedado aos filhos do povo, nos anos cinquenta do século XX – fazer a terceira ou quarta classe do ensino básico, ou primário, era um privilégio. O ensino secundário e superior estavam reservados aos filhos-de-algo: aos ricos ou seus protegidos, aos quais, normalmente, mandavam para os seminários, para depois os absolverem de todos os pecados, grandes e pequenos, e poderem, desse modo, gozar as delícias do céu cristão. A escolha era tão minuciosa que chegavam ao extremo de não permitirem que os filhos de mãe solteira frequentassem o seminário, talvez por pensarem que o jovem já tinha nascido pecador e a sua inserção no meio religioso pudesse contaminar toda a comunidade. Esses jovens eram duplamente castigados: por um lado, o destino negou-lhes um pai; por outro lado, a sociedade rejeitava-os logo que nasciam! A sua estrela não brilharia nunca, o estigma cruel acompanhá-los-ia durante toda a vida.

     Mas, chega de filosofias, vamos ao assunto principal, ao nosso auto. O narrador aparece no palco. Um sorriso cúmplice nos lábios. Diz, em voz alta: - «apresento-vos, finalmente, as personagens:»

Palina – Mulher de vinte e cinco anos de idade, magra, morena, cabelos negros, olhos castanhos e enigmáticos. A sua estatura é a habitual nas mulheres de tipo minhoto ou galego. Pouco instruída escolarmente. De uma voluntariedade extrema, apresentava-se ambiciosa, arguta – capaz de tudo para conseguir os seus fins. Fins esses que, convenhamos, não eram muito ortodoxos.

Vizinho – Homem de idade, olhar inteligente. Aldeão sem caraterísticas especiais.

Velho – Homem tipicamente provinciano, com algum dinheiro, produto da venda de uns terrenos e também daquilo que amealhou durante os anos de emigrante em França. Ronda, nesta altura, os sessenta anos de idade, mas aparenta um pouco mais.

Criança – bebé do sexo feminino, magro e com bastante cabelo.

Moleiro – Homem baixo e forte. Aparenta ter cerca de quarenta e cinco anos de idade. Analfabeto. O seu olhar é o de uma pessoa tosca e tímida.

Enteado – Rapaz de vinte e dois anos de idade, quase um metro e setenta centímetros de altura, magro, mas de porte atlético; apenas possuía a instrução primária. Trabalhava a terra, como seu pai. Tendo ficado órfão de mãe aos dezoito anos de idade, pensou sempre que o seu progenitor não voltaria a casar, pertencendo-lhe, assim, todas as terras e a casa onde habitavam.

Primeiro guarda – Baixo, gorducho, cabeça grande, um pouco velhaco e muito orgulhoso. Teimoso como um burro, perseguia as suas presas até as ver bem fechadas na cela da prisão.

Segundo guarda – Muito parecido com o seu colega; teria um metro e sessenta e cinco centímetros de altura, trinta e cinco a quarenta anos de idade, setenta a oitenta quilos de peso. Pernas arqueadas, andar extremamente cómico.

Guarda-florestal – Figura simpática, respeitador da lei e da ordem, a sociedade para ele não devia ter gente má. Por isso, colaborava com os agentes dessa ordem em prol, dizia, do extermínio dos malandros.

Juiz – Como todos os juízes de Portugal: uma barba austera num rosto grave; um olhar frio, num rosto inexpressivo; distante dos outros seres humanos como convém a quem julga e não é julgado.

Advogado de acusação – Um verdadeiro dândi: barba à Antero de Quental, sorriso abundante. Bom orador, conjugando os verbos em todos os tempos e modos.

Escrivão – Pessoa de meia-idade, habituado a obedecer, fica surpreendido com a atitude afrontosa da Palina. Protótipo do funcionário público manga-de-alpaca.

Agente da judiciária – Grande como um touro. Relativamente jovem, olhar penetrante, e com uma personalidade forte.

Narrador – homem ou mulher, ou travesti, sabendo utilizar uma voz zombeteira quando necessário. Neste auto, ou farsa, vai ser preciso usá-la algumas vezes.

     Mas finda a explicação…

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