AUTO DA PALINA

Por Joaquim A. Rocha


// continuação...


 

Mas finda a explicação…


Vou-vos contar uma história

Que acho muito engraçada:

A de uma mulher sem glória,

A de uma pobre coitada!

 

Vive da verdade-mentira,

Do falso e verdadeiro;

A dúvida ninguém a tira,

É assim no mundo inteiro!

 

Passou-se tudo em Melgaço,

Concelho do Alto Minho;

Fonte do rico bagaço,

Alforge do verde vinho.

 

Terra do belo presunto,

Da sanguinha e salpicão;

Da broa e água d’unto,

Da enguia e do salmão.

 

Do gostoso verde caldo,

E da sopa de nabiças;

Dos fados do Arnaldo,

Dos torresmos e chouriças.

 

Povo de alma a vibrar,

Remoçam a natureza;

Música… até fartar,

Boa comida na mesa.

 

Terra de gente agradável,

De festas e romarias;

Da lampreia e do sável,

Dos assados, doçarias.

 

Com paisagens tão formosas,

Que nos deixam a sonhar;

Mulheres lindas, vistosas,

Com sua voz de encantar.

 

Com seu castelo antigo,

As ruas medievais,

Um clima sempre amigo,

E águas medicinais.

 

Com igrejas centenárias,

Capelas por todo o lado;

Mil fábulas milenárias,

Cavalo branco, alado!

 

Um rio de águas puras,

Regatos aqui e ali,

Terra de beatas e curas,

De lebres e javalis.

 

Terra de lendas incríveis,

De lobisomens e mouras;

De superstições risíveis,

De morenas e de louras.

 

Terra de cabras, ovelhas,

De galinhas e perus;

Algumas casas sem telhas,

Muitas toupeiras e mus.

 

Foi nos anos de cinquenta,

Era do vosso Jesus Cristo;

Mas se o fora em noventa

Não alterava nada isto.

 

Chamavam-lhe a Palina,

Vivia nas altas montanhas;

Aonde sua alma malina

Forjava coisas estranhas.

 

Casou com velho endinheirado

Para apanhar seu dinheiro;

Logo que o tivesse caçado

Mandava-o para o galheiro.

 

Compra veneno para o labrego

E no comer lho vai pondo;

E o seu plano dispondo…

Como hábil estratego.

 

Mas para sua fortuna herdar

Precisam de ter herdeiro;

Assim, lesta, vai comprar,

A filhita do moleiro.

 

Esse pobre desgraçado,

Homem de pouca ciência,

Vende a alma ao diabo

Sem ter disso consciência.

 

Sua Conceição lhe vende,

Em troca de mau dinheiro;

Mas, antes, dizer entende:

 

(Moleiro – com um olhar feroz)

 

Ouve: não conheces o moleiro!

 

(Palina – convincente)

 

Podes ficar descansado,

Já não sou uma menina!

Eu só conheço o “danado”,

Ou não me chamem Palina.

 

(Narrador – movendo-se com agilidade)

 

Foi para casa apressada,

E a dose do veneno dobrou;

E quase sem dar por nada,

Na cova o velho entrou!

 

No dia seguinte ao da morte

Aos quatro ventos gritou,

Que era mulher de sorte,

Que grande fortuna herdou!

 

E apresentou a criança

Ao enteado interesseiro.

 

(enteado – triste e ridículo)

 

Lá se vai a minha herança,

Sou apenas meio herdeiro!

 

(narrador – olhando os espectadores no olhos)

 

Mas um vizinho matreiro

Que a felina espreitou,

Disse:

 

(vizinho – apontando para a criança)

 

- a criança é do moleiro,

Com capital ela a comprou.

 

(narrador – sempre virado para o público)

 

O enteado ouvindo isto,

Enfurecido – gritou:

 

(enteado – com os olhos fora das órbitas)

 

Por nosso Jesus Cristo

Se à justiça não vou!

 

(narrador – com um salto acrobático)

 

A Palina, descoberta,

Tentou criar confusão;

E logo – com voz incerta,

Falou-lhe ao coração:

 

(Palina – toda ternura)

 

Meu filho, não acredites

No que esse homem te diz;

Só te peço que medites,

Quem mais a teu padre quis?

 

 

Eu fui uma boa esposa,

e serei uma boa mãe;

achas que sou aleivosa?

Mataria eu teu pai?

 

(enteado – com ar desconfiado)

 

Não o sei, por satanás!

Quem te fez essa criança?

O meu pai era incapaz,

Só a tinha para a mijança!

 

(depois – apontando)

 

Era um homem de idade,

Muito doente, cansado,

Não podia, de verdade,

Ter-te assim emprenhado!

 

Naquele caixão de riga,

Está um homem sem voz;

Não te encheu essa barriga,

Nem podia com uma noz!

 

Como é possível ter filhos,

Sem estar nove meses prenha?

Não sei por que subtis trilhos

Levas água à tua azenha!

 

 Enganaste bem meu pai,

Não me enganarás a mim.

 

(Palina – desesperada)

 

Ai, ó bom povo – ai, ai,

Livrai-me do Benjamim!

 

(enteado – prosseguindo)

 

Não me enganas, assassina,

Vais pagá-las de uma vez;

Anda cá, alma maligna,

Seu monstro de malvadez!

 

(narrador - com um sorriso de satisfação)

 

E seu gargalo apertou,

Com fúria de tresloucado;

Seus dentes de cão ferrou,

Naquele corpo fanado.

 

(Palina – enraivecida)

 

Larga-me, filho de cão,

Entrega-me à autoridade.

 

(narrador – aparentando tristeza)

 

E rota, ferida, no chão,

Metia dó à piedade!

 

(algum tempo depois…)

 

Eis a nobre autoridade,

A guarda republicana.

 

(primeiro guarda – com cara de mau)

 

Anda, vamos para a cidade,

Pincha para a carripana.

 

(Palina – com ar choroso)

 

Senhor guarda não me prenda,

O meu homem não matei;

Eu juro por santa Alzenda,

Eu respeito muito a lei!

 

(narrador – conivente)

 

O guarda não quis ouvir,

E para a prisão a levou.

Pelo caminho, ela pensou:

«não o poderei sacudir

 

Melhor o fez do que o pensou,

Pois ao incauto guarda seduz!

 

(Palina – primeiro tira-lhe o barrete; depois, entrega-lho)

 

Senhor guarda, o seu capuz

Que da cabeça voou!

 

(primeiro guarda – mostrando compaixão)

 

Obrigado, minha santa,

Tudo isto me entristece;

Quanta pena tenho, quanta!

Libertá-la me apetece.

 

(neste momento a Palina abraça o guarda; o narrador, cúmplice, pisca um olho à plateia e diz):

// continua...

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