AUTO DA PALINA
Por Joaquim A. Rocha
// continuação...
(neste momento a Palina abraça o guarda; o narrador,
cúmplice, pisca um olho à plateia e diz):
E ela, já confiante,
Seu corpo gordo rodeia;
Sorridente, triunfante,
Seu bruto olhar incendeia.
O guarda não pode mais
E a bota mete ao travão.
(primeiro guarda – abraçando fortemente a fêmea)
Mulher dos
meus ideais,
Mulher do meu
coração!
(narrador – tentando imitar a cena)
E ali, na carripana,
Possuir quer, a amada;
Porém, a hábil cigana,
Lança-lhe a sua jogada!
(Palina – desprendendo-se bruscamente)
O meu corpo
será teu,
A liberdade
será minha;
Não sejas
porco sandeu,
Na minha
proposta alinha.
(narrador – sentencioso)
O guarda, desesperado,
Não sabe como reagir;
Quer o corpo desejado,
Mas a lei não quer trair.
É tão grande a tentação,
Que a lei ao diabo manda;
Reage com a paixão…
É o coração quem comanda!
(o guarda atira-se à mulher; ouve-se a respiração dos
dois. Mais tarde, o narrador prossegue):
Satisfeito, o seu desejo,
Diz à pressa, com um ganido:
(primeiro guarda – ainda segurando as calças)
Pensas tu que
tenho pejo
Em romper com
o prometido?
(narrador – apontando para o que se está a passar)
Mas a ladina, prevenida,
Dá-lhe um tal safanão,
Que o deita logo ao chão,
E foge – quase despida!
(aqui, atuar de acordo com a cena)
O guarda corre, aflito,
À procura da pistola.
(primeiro guarda – muito atrapalhado)
Aonde está? Já
estou frito;
Aonde está a
mariola?!
(narrador – com os braços cruzados)
Nesta grande confusão
Não encontra mais o norte;
Cabelo em desalinho, calças na mão,
Já diz mal da sua sorte.
Para o quartel, tosco, volta,
Jurando, um dia, se vingar;
É tão grande a sua revolta
Que junto da imagem vai jurar.
«Por minha mãe
santa, juro,
Que não mais
vou descansar,
Enquanto não apanhar,
Esse
asqueroso monturo.»
(enquanto se muda de cenário, o narrador esclarece o
público)
Parte com outro soldado
Para os montes, à procura
Desse ser endiabrado,
Para o meter em clausura.
(primeiro guarda – dirigindo-se ao outro guarda)
Havemos de a
encontrar,
Nem que seja
no inferno!
Sem ela não
vou voltar:
Nem lhe vale
o pai eterno!
(narrador – com ar sério)
Montes e vales correram…
Fardas rotas, pés descalços;
Quanta tormenta venceram…
Quantos foram os percalços!
Aos dias, seguiram dias…
Eles, sem nada encontrar!
Esperança e ódio, por guias,
Prestígio a reencontrar.
Em certa manhã nebulosa,
A sorte bateu-lhes à porta;
(segundo guarda – falando para si próprio em voz alta)
Como a dita é
caprichosa,
Mas que venha
é o que importa!
(narrador – gesticulando)
É o guarda-florestal
Que a fugitiva apercebe.
(guarda-florestal – apontando)
Ela está no
matagal,
Fugiu de mim
como lebre.
(narrador – fingindo estar comovido)
E logo os três a cercaram,
Dando-lhe voz de prisão;
Seus cães-lobos mandaram
Trazê-la à sua mão.
(primeiro guarda – agarrando a mulher sem parcimónia)
Até que
enfim, mulher maldita,
Nunca mais me
escaparás!
(e dirigindo-se ao outro guarda)
Traz-me,
Toino, uma guita,
Atemo-la aqui
atrás.
(narrador – com ar triunfante)
Meteram-na na carripana,
E ataram-na, bem atada.
(segundo guarda – de punho fechado)
Nunca mais
foges, tricana,
A aventura está
finada!
(Palina – com um olhar furioso)
Não o
penseis, desgraçados,
Filhos de uma
mãe impura;
Já a mais
espevitados…
Eu cavei a
sepultura!
(e, sem ninguém o prever, atira-se do jipe abaixo, e
rola por uma ribanceira enorme; pelo caminho a corda que a atava deu de si; o
narrador, atónito, diz):
Quando foge, espavorida,
Poço profundo avista;
E com desdém pela vida
Nele mergulha a artista!
Os guardas, sem hesitar,
Despem-se num segundo;
Cumprindo da lei preceito:
«O castigo é
neste mundo».
A Palina, como um gato,
Como filha de Pluto,
Mesmo dentro do regato,
Traça um plano arguto:
Deixar-se passar por morta,
Castigá-los no seu brio;
O gozo é o que importa
A este ser de sangue frio.
Já em terra, bem prostrada,
Corpo sem vida ali jaz;
Diz um guarda: - «que
maçada,
Mais um
problema nos traz».
Improvisam forte maca,
Da sua roupa lhe vestem;
E sem ganhar mais pataca,
Caminho íngreme investem!
Na subida vão suando,
Maldizendo sua sorte;
Corpo “morto” carregando,
Movendo a própria morte.
Finalmente vê-se a estrada,
Poisam-na com certo cuidado;
Pele dos ombros rasgada,
Lombo forte castigado!
Nesta altura, a Palina,
Filha de deus gozador,
Levanta-se do estupor,
E diz-lhes, tal Agripina:
Filhos pobres
do homem deus,
Seres sem
inteligência;
Tolos, porcos
e sandeus,
Falhos de
toda a ciência.
Morta… eu?
Génio do mal,
Filha do
olímpico Zeus,
Senhora do
vendaval…
Dos oceanos,
dos céus!
Sou irmã de
Neptuno,
Tenho poder
sem limite;
Separo,
destruo, uno,
Eu sou
pólvora, dinamite!
Tudo posso,
se o quero;
Dou vida ao
impossível…
Eu criei o
doido Nero,
Conduzo a nau
do Terrível!
Se me
prendeis, perdei-vos!
Porque as
prisões são imagens,
Devoro-as,
como miragens…
Meus “homes”…
arrependei-vos!
(narrador – parecendo escandalizado)
// continua...
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