AUTO DA PALINA
Por Joaquim A. Rocha
// continuação...
E nesta onda de «ditos»
Seguiram para a prisão;
Ela pensando: malditos,
Tereis a
vossa “ração”.
(neste passo o narrador muda de tom de voz)
Exaustos, rotos, vingados,
Chegam à cadeia com ela.
(primeiro guarda – dirigindo-se ao carcereiro)
Abre, Zé, os
cadeados,
Mete esta
bruxa na cela.
(narrador – mais calmo)
Todo o processo se inicia
E vai, enfim, a tribunal;
A sentença se anuncia:
É no mês de carnaval!
(o narrador, aqui, dá duas fortes gargalhadas)
Foram buscá-la ao cárcere,
Sentam-na no banco dos réus;
O juiz, tal como um prócere:
Semi-homem, semideus!
(Palina – com ar solene)
Sobre esta
bíblia eu juro
Só a verdade
proferir;
Condene-me
Zeus por perjuro,
Mate-me Jesus
por mentir.
(narrador – sentencioso)
E perante o auditório,
A ré sua “estória” conta;
No banco atrás, falatório:
(vozes – admiradas e irritadas)
«Ela, peça a
peça, monta!»
(narrador – retomando o discurso)
O advogado contrário,
Interrompe a habilidosa.
(advogado – de pé, virado para o juiz)
Isso é conto
de vigário,
É “estória”
engenhosa!
(juiz – com ar carrancudo)
Deixe, Sir,
falar a ré,
Seja, Sir,
mais educado;
Isto não é
cabaré…
É um lugar
respeitado.
(narrador – dando a impressão de lastimar)
O advogado, seco engole,
E pensa para os seus botões:
«o cliente que
se amole,
Não posso com
safanões»!
(o narrador, neste passo, altera a voz)
Eis que é chamado o moleiro,
Todo ele é comoção…
(vozes da sala do tribunal)
Terá sido só por dinheiro
Que ele vendeu a Conceição?
(narrador – olhando para o moleiro)
O moleiro, atrapalhado,
Fala quase em surdina.
(moleiro – dando a sensação de falar para o universo
inteiro)
Não pensem
que sou malvado,
Que sou um
reles lupina;
Eu tenho
catorze filhos
E a minha
profissão,
Nos anos de
maus milhos,
Deixa-me a
casa sem pão.
A minha
mulher, coitada,
É uma pobre
doente;
De roupas,
não tem pitada!
De comer…
sabe-o a gente!
Eu precisava
de dinheiro,
Por isso a
criança vendi;
Eu sou
honesto moleiro,
Não devia
estar aqui.
Trabalho de
sol a sol,
Não há
descanso pra mim;
Na cama… não
há lençol,
Na mesa… só
um petim!
Tanta
boquinha inocente,
A pedir-me de
comer;
Eu, zangado,
descontente,
Nem sei o que
hei de dizer!
No mundo foi
sempre assim:
Uns são
ricos, outros pobres;
O pobre é
mau, é ruim…
Os ricos são
sempre nobres!
Essa mulher
me iludiu,
A verdade não
me contou;
Com todos os
dentes mentiu,
Quando a
criança comprou.
(narrador – batendo palmas e rindo)
A Palina, furiosa,
Grita de pronto ao juiz:
(Palina – com um olhar sobrenatural)
A voz dele é
ardilosa,
Inventa tudo
o que diz.
(narrador – convincente)
Impõe-se o juiz, irado,
(juiz – olhando a ré com ferocidade)
Cale-se,
mulher cruel,
Nesse corpo
do diabo,
Estou a ver –
só tem fel!
(narrador – dando um pulo no ar)
Então a Palina salta,
Como uma gata assanhada;
E fala, em voz bem alta:
(Palina – com um sorriso zombeteiro e estranho)
Agora já vejo
a jogada…
O juiz também
está feito;
Tem vil parte
na fatia!
(narrador – chamando a atenção de todos)
Ouçam o escrivão Melancia.
(escrivão – deveras zangado)
Com os
diabos! Não há respeito,
Estamos num
tribunal,
Ou numa
taberna imunda?
Confesso:
nunca vi tal,
Nunca vi tal
barafunda!
(Palina – dirigindo-se exclusivamente ao juiz)
Toma cuidado,
juiz,
Pela boca o
peixe morre;
É o povo quem
o diz…
Vê pra onde
vento corre!
Não te quero
fazer mal,
Mas não me
irrites a pele;
Há bonito
animal
Que letal
veneno expele!
Aquele tecto
é duro,
Mais do que a
tua sentença;
Por todos os
deuses juro,
Que o provo
sem detença.
(narrador – com os cabelos revoltos)
O juiz… quer adiado,
O julgamento infernal;
Oh! É tarde, o coitado
Foi lançado ao vendaval!
(agir, em cena, de acordo com esta situação; o
narrador continua…)
A sala parece um ringue,
Os socos dão-se a rodos;
Em linguagem bilingue,
Todos ofendem a todos!
A ambulância é chamada,
Leva feridos ao hospital;
(vozes populares)
«Isto… é pura
cegada,
É mesmo do
carnaval!»
(narrador – já completamente exausto)
Eis a grã-judiciária,
Pra resolver a questão.
(agente da judiciária – apontando para a Palina)
Vai para a
penitenciária,
Não há outra
solução!
(narrador – com aspeto de quem vem da festa)
O juiz rejeita a ideia,
E decide sem detença:
A ré aguarda na cadeia
Até ele ler a sentença.
A seguir adia a sessão
Até tudo acalmar;
A ré volta à prisão,
Espere o que esperar.
Palina, já mais serena,
Tudo lhe parece irreal;
Mas que coisa, aquela cena,
Estava possessa do mal.
Transportada para a prisão,
Sob escolta apertada,
Vai esperando a ocasião
Para a fuga imaginada!
Sobre as costas leva um xaile,
Seu corpo, velho parece;
Seu olhar está num baile:
O cérebro não arrefece!
Os guardas atentos vão,
Sabem que ela é perigosa;
Querem vê-la na prisão,
Ou até na Gorongosa!
Os rapazes vão atrás
- espetáculo querem ver –
É o Zé, o Tó, o Brás…
Nadinha, podem perder!
Um acontecimento assim,
Apenas um eu conheço:
Era um tipo assaz ruim,
Tomás d’Aquino Codeço.
Homem de muitas matanças,
Na guerra civil andou;
Herói das extravagâncias,
Vidas sem conta ceifou.
Matou culpados, inocentes,
Muitos civis e militares;
Religiosos, descrentes,
E até mesmo seus pares.
Mais dum século decorreu
Sobre a morte do malvado;
E, por ironia, morreu
Sob as balas dum soldado!
Mas voltando à “heroína”,
Que nos traz tão ocupados…
Ei-la, a bela felina,
De olhos tão magoados!
Não sei se vai chorando,
Mas não é costume nela;
Mulher de aço, mostrando
Rostinho de Cinderela!
Vai magicando a maneira
De fugir por esses montes;
Tomar banho na ribeira,
Beber água em puras fontes.
Quando avista a ermidinha
Da Senhora da Candeia,
Implora: «minha santinha,
Livra-me da
vil cadeia».
De repente, furacão!...
Parecendo que ia cair,
Atira-se ao duro chão,
Para de novo subir!
Nas mãos areia transporta,
Aos olhos da guarda a atira;
Para o verme não há porta,
Pelas montanhas se estira!
Os guardas, surpreendidos,
Com os olhos areados,
Dizem não estar vencidos,
Apenas ludibriados.
(o narrador, neste passo, interrompe; muda de roupa e,
solene, diz)
Buscou Castro Laboreiro,
Subiu ao velho castelo;
Não viu armas, nem armeiro,
Nem o lume, nem panelo!
Fugiu dali, pé ligeiro,
Com as feras foi viver;
Comeu lande do sobreiro
Para a fome não morrer.
Pela serra da Peneda,
Fosse inverno ou verão,
Sorridente, até leda,
Caminhava na ilusão.
Comia ouriço-cacheiro,
Os frutos da floresta,
Bebia água do ribeiro,
Passava o dia em festa!
Não queria fama nem glória,
Queimava recordações;
Omitissem da história
Suas nefastas ações.
Sonhava ser uma loba,
Perdida por esses montes;
Com cara de bruxa boba,
Voando sobre as pontes.
Luta pela sobrevivência,
Tudo faz pra resistir;
Mas no auge da violência,
Acaba por sucumbir!
A perseguição foi constante,
Mas difícil a captura;
Sempre perto e distante,
Da morte e da sepultura.
Finalmente capturada,
Corpo preso com correntes,
Suas mãos bem algemadas,
Um freio nos brancos dentes.
Conduzida à cadeia,
Com mil cuidados, mais um;
Enrolada em sua teia,
No anzol como um atum!
Jamais se ouviu sua voz,
Jurou silêncio total;
A gata terrível, feroz,
Tornou-se mansa, banal.
Mais tarde a vil ladina,
Uns vinte anos apanhou;
Mas o juiz que a condenou
Morreu de morte malina!
Dizem que à terra voltou,
Depois de cumprir o tempo;
Estou certo, não chorou,
Nem teve arrependimento!
Não era do nosso mundo,
Veio de outro universo;
Carregava mal profundo,
Tinha cérebro perverso!
Era filha de Satanás
E duma deusa dos céus;
Irmã do ladrão Barrabás,
Esse filho de arameus.
Aceitou o seu castigo,
Em roupagem de flanela;
Já dormia num jazigo,
Sem ninguém de sentinela.
Fosse qual fosse a sentença,
Uma coisa é mais que certa:
«o crime jamais
compensa»,
Por isso, amigo: - alerta!
Não troques a liberdade,
Pela fama, por dinheiro;
Cultiva sempre a verdade,
O amor do mundo inteiro!
Vive a vida, sê feliz,
Luta pela paz dos países;
Espalha a tua matriz,
Como as árvores as raízes.
Viver em paz, harmonia,
Eis a nossa condição;
Algumas vezes folia,
Ao excesso dizer não!
Vive apenas do trabalho,
Defende sempre a justiça;
Usa a enxada e o malho,
Foge do vício e preguiça.
Agradece teres nascido,
Teres emprego, profissão;
Não dês o tempo por perdido,
Só se perde o que é em vão!
O ser humano é imperfeito,
Tal como o nosso universo;
Até o ar é rarefeito
Quando na água submerso!
Dizem que os deuses são puros,
Sem defeitos nem pecados;
São como os frutos maduros:
Mui bonitos, mas bichados!
FIM
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